sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Fala sério, doutor!


Diz-se que em certas profissões o cara acha que é Deus; em outras o peste tem certeza disso. Equivale a um velho ditado que afirma que se você quer conhecer um homem, dê poder a ele.

Ao longo dos meus vinte e poucos anos (believe it or not), pude compartilhar alguns momentos com algumas figuras estranhas e pelas quais nutro verdadeiro desprezo. Na verdade, já dizia um amigo meu, que poder e autoridade não é para qualquer um. A soberba é o pecado capital que mais me causa repugnância quando o identifico em alguém e, por acaso, é o mais frequente em determinadas carreiras.

É bem certo que vivo em um meio em que a vaidade é algo que alguns acreditam piamente ser da própria essência da profissão, ainda que não seja a tônica, já que poderia citar aqui uma centena de bons exemplos de humildade e de convivência harmoniosa com o poder. Permito-me, entretanto, mirar num único e recente exemplo para escrever o presente texto, já que, confesso, nunca vi nada parecido em toda minha vida, fato que ocupou um pouco do meu tempo para estudar o que reputei como um comportamento patológico.

Sempre fiz questão de ser a mesma pessoa, muito embora de uns anos para cá a nova profissão tenha me trazido grandes oportunidades e proporcionado, além de uma vida digna, uma recompensa maravilhosa de poder trabalhar pela sociedade, e não há nada que se compare ao prazer que sinto em exercer tão formidável ofício. A pompa do terno, da gravata e do que chamo de “a capa do Batman” nunca me impressionou, tampouco a formalidade do cargo. Aliás, abro um parêntesis para indagar por qual motivo aquela peruca branca de trancinhas foi abolida, ao tempo em que parabenizo o autor da façanha que me poupou de tamanho ridículo. Usa-se esse “conjunto” por uma convenção que acho absolutamente desnecessária, sobretudo no lugar em que vivemos onde o calor e a umidade acabam por cozinhar o cidadão, o que deveria ser motivo para incentivar o seu desuso.

Mas o que me desagrada mesmo não é a vestimenta, mas a vaidade exagerada e a crença de que se está acima de tudo. Isso parece coisa de rico, mas estou falando de gente pobre mesmo, já que quem vive de salário pago pelo estado, como eu, não pode se considerar rico, ainda que se ganhe o suficiente para proporcionar uma vida confortável para a família, sem luxos ou gastos desnecessários.

O poder dado a algumas pessoas tem limites e está circunscrito a determinadas ações. Não serve, por exemplo, para comprar uma cerveja na esquina e exigir que o dono do bar te chame de doutor. Também não serve para comprar uma passagem aérea e exigir que a poltrona da fileira 13 (a que tem mais espaço), esteja sempre reservada e disponível para você com aquela plaquinha “Reservada para o Doutor”. Também não serve para decidir sobre a vida do pipoqueiro que insiste em apertar o “fom-fom” para alertar todo mundo de que tem pipoca quentinha. Quando muito, ajuda para dar uma ligada para o gerente do banco para que ele dê uma esticadinha no limite do cheque especial ou uma renegociada no empréstimo consignado. A resposta é sempre a mesma: “Pois não, Doutor! Fique tranquilo!”. Esquece o endividado que o banco nunca perde e que os juros sempre serão cobrados. Na verdade, não vejo grande vantagem em ser “doutor’.

Digo isso porque a vaidade, em alguns casos, parece transcender os limites do cargo e alargar a sombra do próprio poder.  Aliás, em posição diametralmente inversa, lembro de uma audiência que fiz em uma comarca do interior em que um humilde cidadão tirou as sandálias para entrar na sala de audiências. Usava uma camisa de candidato, quando isso era possível, e um calção verde com uma faixa branca na lateral. Quando deu o primeiro passo para dentro da sala, parou assustado e perguntou se poderia entrar com aquela roupa. O grande Juiz que ali estava disse que não via qualquer problema com a roupa que ele usava e aproveitou para pedir-lhe que colocasse as sandálias de volta nos pés. Confidenciou-me o cidadão, depois de encerrada a audiência, que aquela era a melhor roupa que tinha e que havia sido alertado por populares que não poderia entrar no fórum com aqueles trajes.

Mas se você pensa que isso é a regra, está redondamente enganado. Tanto na minha profissão quanto na sua, na dos outros, há aqueles que se acham acima de tudo e de todos e que, como dizia meu pai, pensam que podem ganhar a vida com a cara, metendo medo nos outros que nem sapo cururu.

Aliás, outro dia recebi uma cópia de uma sentença em que uma autoridade do Rio de Janeiro recorreu ao judiciário para exigir que o porteiro do prédio lhe chamasse de doutor. Disse o porteiro, quando advertido pelo cidadão que exigira tratamento de autoridade: "Fala sério!". Havia ficado indignado porque o empregado lhe chamava de “você” enquanto tratava a síndica de “dona”.

A sentença é uma aula de boas maneiras e da delimitação dos absurdos do poder, não tivesse sido ela tratada como “teratológica” pelo Tribunal, que ainda advertiu o Magistrado porque não concedeu a antecipação da tutela pretendida pelo autor, cujo pedido era, em síntese, o seguinte:

“(...) em razão de sua posição social, “é um homem público cuja respeitoriedade é notória” e “como homem público, tem sua honra valorada especialmente em relação aos particulares”, devendo receber o tratamento de acordo com o seu status (“Doutor”, “senhor”). O “periculum in mora” se configura porque, sem a ordem explícita dos réus, para que os empregados do Condomínio respeitem o autor, o empregado que vem insultando-o continuará a fazê-lo. Desse modo, impõe-se o deferimento da tutela antecipada, que ora requer-se, a fim de que V.Exª, liminarmente, digne-se de ordenar aos réus que orientem os empregados que trabalham no Condomínio a dar ao autor, e demais pessoas que vão visitá-lo, o tratamento formal (“Doutor”, “senhor”, “Doutora”, “senhora” etc), sob pena de multa diária de R$ 100,00 pelo descumprimento a partir da intimação.”
Destaco para vocês um trecho da sentença:

“(...) “Doutor” não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário.

Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de “doutor”, sem o ser, e fora do meio acadêmico. Daí a expressão doutor honoris causa — para a honra —, que se trata de título conferido por uma universidade à guisa de homenagem a determinada pessoa, sem submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que “professor” e “mestre” são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado.

Embora a expressão “senhor” confira a desejada formalidade às comunicações — não é pronome —, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.

O empregado que se refere ao autor por “você”, pode estar sendo cortês, posto que “você” não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação.

Fala-se segundo sua classe social.

O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe “semi-culta”, que sequer se importa com isso.

Na verdade “você” é variante — contração da alocução — do tratamento respeitoso “Vossa Mercê”.

A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas frequências do pronome “você”, devem ser classificados como formais.”

Não tenho a pretensão aqui de criticar qualquer pessoa que dispense tratamento formal a uma autoridade, quer seja por deferência, conveniência ou por merecido respeito, tampouco entro na discussão da relação entre a autoridade e o porteiro do prédio, até porque acho absurda demais a idéia de impor aos outros a forma de tratamento que alimenta e massageia o próprio ego, já que ninguém pode ser obrigado a sustentar a vaidade alheia. Apenas faço uma reflexão sobre o exagero na pompa e, sobretudo, os seus reflexos danosos na relação de trabalho. Aliás, conheço pessoas que adoeceram com a arrogância de alguns e que se sentem um lixo humano, o que, convenhamos, beira as raias do absurdo e indica um comportamento doentio para o qual o tratamento psiquiátrico é recomendado.

Pessoas há que são incapazes de dar um “bom dia”, pedir “por favor” para que alguém faça algo que não é sua obrigação, agradecer ou até mesmo cumprimentar o colega de trabalho, como se isso o diminuísse. O nariz empinado só serve para mostrar a meleca que tem dentro e, não raras vezes, a arrogância esconde a incompetência e o medo de expor as próprias fraquezas. É muito triste e lamentável tudo isso.

Penso, amigos, que é sábio aquele que é humilde sem ser subserviente e é nisso que reside a grandeza do homem. No mais, o grande barato da vida é fazer boas amizades, poder compartilhar momentos de alegria, sentir-se bem no ambiente de trabalho, enfim, ser feliz como eu sou.

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